segunda-feira, 2 de abril de 2012

UM BRASILEIRO DE SORTE

      No próximo dia 12 de abril, ele completaria 81 anos. Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho faleceu no último dia 23 de março, após mais de um ano com complicações de saúde.
      Neste artigo, o poeta e músico friburguense Arnaldo Luis Miranda presta uma homenagem ao notável humorista que o Brasil consagrou como Chico Anysio. Leia. Vale a pena!!!! Publicado também em http://www.avozdaserra.com.br/noticias.php?noticia=18847  



Por Arnaldo Luis Miranda

Escrevo no calor da dor, para acalmar o coração e dizer da alegria e da honra de ter testemunhado, como fiel espectador ao longo de quase cinqüenta anos, a passagem de um gênio pelo mundo do meu tempo.
Amo a dramaturgia e, como muitos dessa época, que vai de meados do século passado até a primeira metade desse, que é quando mais ou menos devo também desaparecer (salvo precipitações de qualquer ordem), freqüentei e acompanhei, como espectador, atores geniais no exercício dessa arte maior e efêmera, que o cinema, depois a televisão, eternizaram de alguma forma.
Ali, na telona ou no tubinho, assisti performances memoráveis, de gente que aprendi a amar de longe pelo muito que me deu, sem que se pudesse sequer estabelecer os termos exatos daquela troca algo imponderável entre o ator e seu imenso público, agora em escala mundial.
E continuam a nascer e a se formar novas e novíssimas gerações dessa raça caída das estrelas que são os atores, basta pensar em Kate Winslet e Débora Secco para saber que a fábrica não fecha. Nunca.
Mas, eu não escrevo aqui, tangido pela dor, quebrado pela saudade, para falar de um ator, não se trata nem mesmo de um grande ator, mas, antes, para falar de alguém fora de série. Explico.
Atores ou criam tipos ou encarnam personagens, mergulham em histórias fechadas ou razoavelmente fechadas (caso de seriados e novelas de tevê) e, a partir dali, colocam o seu talento e a sua sensibilidade a serviço daquele tipo ou personagem mas, sobretudo, daquela história que contam junto com outros atores e ainda outros tantos profissionais que se envolvem com as deliciosas tarefas da narrativa dramatúrgica, essa forma do homem se ver no homem.
Chico Anysio não criou tipos nem encarnou personagens; como um deus, ele penetrou a alma e o coração das ruas do Brasil de seu tempo e deu à luz personalidades completas, todas encontradiças em nossas esquinas, praças e bueiros (local de assento do Justo Veríssimo, pois não?), repletas de estranha e complexa humanidade.
Não vou exercer a faculdade de comparação porque comparação não há com o que o Chico fez em sessenta e cinco anos de carreira, na travessia do rádio para a tevê. Como todo gênio, esqueceu-se a si em aspectos menores do seu talento incomensurável – como a música, a literatura e a pintura - para se descansar e por vezes, creio, escapar de si, mas, no essencial de seu exercício como artista, como humorista, no sentido duplo de redator e intérprete de seu texto, esqueça!
Estamos falando de um fenômeno que existiu por uma única vez à luz do mundo e fomos nós, os brasileiros de então, os privilegiados de seu testemunho. Sinto muito pelos povos que não o puderam amar ou gerar e não se viram, assim, interpretados por sua sensibilidade absurda.
Como bem disse o Boni [José Bonifácio de Oliveira Sobrinho], seu amigo de uma vida inteira, havia em Chico a inocência essencial do não julgamento, a mesma que prega o Cristo (e também, sem ênfase, o Profeta), apenas que pelo viés do riso, como que a provar que podemos e devemos ser críticos sobretudo quando amamos muito. Todavia, com doçura, com suavidade e compaixão. Veja! Principalmente os criticados se deliciavam com sua pureza (João Figueiredo ligava para reclamar carinhosamente de Salomé), muito embora não se corrigissem por suas críticas, que, afinal, não tinham esse poder, por óbvio, nem o pretendiam.
Chico nos espelhava a todos em sua alma abismal, abissal, quântica, e nos mostrava a nós 210 de nós mesmos, ele, inclusive. Pois também o somos, acredite! Por “increça que parível”, também nós, os idiotas da subjetividade, brasileiros rudes que abrimos as janelas de nossos carros caros para jogar lixo na rua, a patuléia complacente que sustenta esse Parlamento constrangedor e esse Judiciário sombrio, também nós temos algo e muito daquelas pessoas plasmadas por sua obra de gênio e uma chama mínima de sua própria presença, pois todos nós o compreendíamos perfeitamente e com ele nos deliciávamos também, sabíamos que crescíamos juntos a cada semana, a cada dia de aula na Escolinha do Professor Raimundo (o que pouco ensinava e muito aprendia) e que, de certa forma, aquilo tudo que ele fazia, o Chico em si, melhorava-nos a nós um pouco e muito. Não é mesmo, Biscoito? Ca-la-da! É mentira, Terta? Afe, ainda morro disso..
Os grandes atores levam os seus tipos ou personagens por tempo determinado, durante um período definido, depois, naturalmente, cantam para que subam, xô! Precisam se livrar daquela criatura construída meticulosamente como um Frankenstein melhorado, biológico e orgânico que seja, para seguir em frente e vivenciar nova experiência de criação e interpretação, é assim com todos os atores e grandes atores do mundo, no mundo todo. Menos com Chico.
Nele, viveu uma cidade completa, um mundo perfeito, um universo inteiro! Por anos a fio e ininterruptamente. Riso e inteligência em um mesmo corpo e espaço-tempo como já não vê tão habitualmente por esses dias de 2012. Foram-se todos, agora, como bem disse o “manchetista” de O Dia: Morreram Chico Anysio. É do que se trata, não menos. Apaga-se uma galáxia e seu intérprete. E ali vivíamos todos nós, brasileiros desse tempo, de modo perene e completo, sem julgamentos, com amor e compaixão extremos, o que só a beleza da inocência permite que assim o seja. Não algo raro, mas, antes, único.
E, no entanto, protegido pelo manto diáfano (não, não me refiro aqui ao pavilhão cruzmaltino) do quotidiano, o nosso demiurgo maior, intérprete re-criador da alma do povo brasileiro, praticou suas inúmeras conquistas amorosas (na minha pobre opinião, ele próprio inspirou-se o Silva, o bonitinho), pintou suas marinhas, cantou pa tu, criou uma penca de filhos, amparou a família e os colegas de profissão sob o seu largo guarda-chuva e distribuiu sua compreensão singular da vida como peixes aos famintos da grade de programação da TV Globo, sua morada definitiva e repouso das cinzas.
Aponte-me outro para o descanso de minha estupefação! Revele-me um igual romeno ou mesmo um parecido alemão ou semelhante turco, “oquei”, cite-me um inglês da City ou então um grande americano daqueles dos tempos em que os americanos queriam e gostavam de ser grandes, ou um italiano amigo do Fellini ou um espanhol amigo do Buñuel, alguém da turma do Bergman ou Woody Allen... não há, só Chico e mais ninguém como ele. Nem antes e nem depois.
Assim como um homem comum de outras épocas poderia dizer, estive na Terra ao tempo de Alexandre, o Grande, ao tempo de Aquiles, posso dizer, com satisfação extrema, estive na Terra ao tempo de Chico Anysio. Nas suas inigualáveis dimensões, em grandeza, brilho e magnificência, em sua extrema singularidade, creio mesmo que só possa somar à minha glória de mortal a presença igualmente intangível de Pelé, outro gênio único do tempo que me foi dado. Ou então, para pirar de vez o cabeção, um outro Chico. O Cândido Xavier (bom, mas aí já estamos falando de entidades da Luz, né?).
Fala sério! Que brasileiro de sorte sou eu, não? A alma banhada por tantas grandezas do espírito humano.
(25mar2012, ar.)

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